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A praga do 'gerundismo' (crônicas do professor Pasquale)


Frases como “Eu vou estar transferindo a ligação” surgiram no telemarketing. Mas já se instalaram no topo, lá na diretoria.


Não acredito no purismo lingüístico, não. Desde que o homem é homem, as culturas e, conseqüentemente, as línguas se interpenetram. Hoje, quem é que reclama da palavra “otorrinolaringologista”, todinha grega? Quem é que não usa a palavra “garagem” (ou “garage”, tanto faz), que vem do francês? Mas (quase) tudo na vida tem limite. Em se tratando da língua, ou, mais especificamente, dos estrangeirismos, o limite é imposto pelo bom senso. Não vejo o menor sentido, por exemplo, no tosco uso da palavra “off”, que aparece na porta de algumas lojas. Não se trata de caso que enriquece a língua, que preenche espaço até então vago etc. Trata-se de subdesenvolvimento mesmo. Incurável. Ou, como dizia Nelson Rodrigues, do complexo de vira-lata. No lugar de off, parece conveniente usar a ultraconhecida palavra “desconto”, cujo significado qualquer brasileiro conhece. Onde estaria a inadequação de frases como “O senhor pode estar anotando o número?” ou “Um minuto, que eu vou estar transferindo a ligação”, que hoje em dia pululam e ecoam nos escritórios, no telemarketing etc.? O problema não está na estrutura – “flexão dos verbos ‘ir’, ‘poder’ etc. + estar + gerúndio” –, mas no mau uso que dela se tem feito. Essas construções são da nossa língua há séculos, ou alguém teria peito de dizer que uma frase como “Eu bem que poderia estar dormindo” é inadequada?


Qual é o problema então? Vamos lá. Quando se diz, por exemplo, “Não me telefone nessa hora, porque eu vou estar almoçando”, indica-se um processo (o almoço) que terá certa duração, que estará em curso, mas – santo Deus! –, quando se diz “Um minuto, que eu vou estar transferindo a ligação”, emprega-se a construção “vou estar transferindo” para que se indique um processo que se realiza imediatamente. Quanto tempo se leva para a transferência de uma ligação? Meses ou segundos? O diabo é que, para piorar, “vou estar transferindo” é uma verdadeira contorção verbal, que substitui, sem nenhuma vantagem, a construção “vou transferir”, mais curta, rápida, direta – e apropriada.


A moda do “gerundismo” (essa de “O senhor tem que estar pegando uma senha”, “Vamos ter que estar trocando a embreagem do seu carro”, “Ela vai precisar estar voltando aqui amanhã”, “A empresa vai poder estar fornecendo as peças” e outras ultrachatices semelhantes) só tem uma coisa de bom: o caráter democrático. Traduzo: a praga pegou da telefonista ao gerente, da faxineira ao diretor-presidente. E quem começou tudo isso? Não se sabe, mas me atrevo a dizer que nasceu da tradução literal do inglês (de manuais ou assemelhados).


Recentemente, um motorista me disse: “Professor, agora o senhor vai ter que estar me dizendo em que rua eu vou ter que estar entrando”. Se eu tivesse levado a sério a pergunta dele, deveria ter respondido isto: “Naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua…” E, assim que ele entrasse na tal rua, eu deveria exigir que ele parasse o carro, engatasse a ré e ficasse entrando e saindo da rua (ou entrando na rua e saindo dela, como preferem os que amam a sintaxe rigorosa), até moer a embreagem, os pneus… Até o gerundismo sumir do mapa!


Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura

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